As formas Geométricas e os Módulos Arquitectónicos Civilizacionais, que romperam com os métodos utilizados no passado no surgir do movimento moderno, na qual deixaram uma herança pesada aos novos desafios que enfrentamos com a dita sustentabilidade.


A FORMA É O MAL DA MATÉRIA

Estrutura parece não ser, nota Krober na sua Anthropology (p. 325), mais do que fraqueza diante de uma palavra cuja significação se encontra perfeitamente definida, mas que se cobre subitamente, e já por uns dez anos, de uma sedução de moda – tal como a palavra “aerodinâmico” –, donde, tende a ser aplicada sem descriminação, durante o tempo que dura a sua moda, devido à concordância das suas consonâncias.”
Para superar a necessidade profunda que se esconde sob o fenómeno, de resto incontestável, da moda, é necessário operar por “via negativa”: a escolha desta palavra é pois uma combinação – estrutural, bem entendido – de exclusões. Saber porque dizemos “estrutura”, é saber porque queremos deixar de dizer eidos, “essência”, “forma”, Gestalt, “conjunto”, “composição”, “complexo”, “construção”, correlação”, “totalidade”, “Ideia”, “organismo”, “estado”, “sistema”, etc.. É necessário compreender porque é que cada uma destas palavras se revelou insuficiente, mas também porque é que a noção de estrutura lhes continua a conferir alguma significação implícita e a deixar-se habitar por elas.
Jacques Derrida


O estruturalismo é porventura a última das grandes narrativas totalitaristas do século XX. Visando a constituição de modelos teóricos sincrónicos e sistemáticos, extensíveis a toda a experiência e extrapoláveis a todo o existente, o estruturalismo esquematiza para regularizar – como o mito regulariza o medo, a linguagem regulariza o desejo, a história regulariza o destino e a tragédia regulariza o homem (primeira e última criação do homem, agora abatida pela genética), etc.. A mutação epistemológica introduzida pelo estruturalismo, a-histótico e universalista, consiste não em explicar, mas em propor uma descrição planificada, indiferente quanto aos seus fundamentos, técnica no seu procedimento. Na estrutura, unidade formal da forma e do sentido, a ordem, a relação e a configuração desembocam pois numa solidariedade arquitectónica, numa patterned congruence, a um tempo simplificadora, porque regula e valida, e apaziguadora, por escamotear o perigo, a determinação ideológica (a que o estruturalismo sempre pretendeu furtar-se), de deformar, unificando, as concepções e as possibilidades de experiência num único modo, não isento de contradições, de formular as interrogações sobre o mundo e os seus fenómenos. Perante um interlocutor que se recusa a mentir, aquele que faz sempre a mesma pergunta, obterá sempre a mesma resposta, a não ser que o outro se cale. Essa resposta única não tem, no entanto, de ser forçosamente verdadeira.

A crítica desconstrutivista, pós-estruturalista, centrar-se-ia assim, por um lado, na exigência de questionar (estruturalmente) as relações entre a teoria abstracta, que postula o objecto de estudo, e a experiência concreta do fenómeno; e, por outro, na necessidade de empreender uma discussão filosófica, necessariamente problemática, sobre as categorias que compõem o sistema ou que estão na sua base.

Dando conta de que a linguagem não pode dar conta de tudo – “nous avons beaucoup de choses et pas assez de formes” –, Flaubert participa do processo moderno da substituição de uma linguagem de expressão por uma linguagem de criação: se criar é revelar, “a linguagem deve produzir o mundo que não pode exprimir” (G. Picon). As limitações expressivas da linguagem – “a forma é o mal da matéria”, desabafa Regina Guimarães – seriam assim resultado de uma velha sedução. Como refere Derrida (citando Rousset), o que do interior ameaça a luz é também o que ameaça metafisicamente todo o estruturalismo: esconder o sentido no acto mesmo de o descobrir; compreender a estrutura de um devir, a forma de uma força, é perder o sentido encontrando-o. A forma fascina e condena toda a crítica ao formalismo estruturalista pois aquele que vê (e, portanto, analisa) tem antes de mais de mortificar o que se lhe apresenta, neutralizando-lhe o sentido, para revelar mais claramente o “desenho de estrutura”, o seu esqueleto descarnado. Diante de uma obra ou de um objecto, propõe Leibniz, tem sempre de se encontrar uma linha, por mais complexa que esta seja, que dê conta da unidade, da totalidade do seu movimento e dos seus pontos de passagem:

Suponhamos, por exemplo, que alguém fizesse ao acaso uma quantidade de pontos sobre um papel, como fazem aqueles que exercem a arte ridícula da geomancia. Asseguro que seria possível encontrar uma linha geométrica, cujo princípio fosse constante e uniforme de acordo com uma certa regra, que passasse por todos esses pontos, e na mesma ordem que a mão os tivesse marcado.
E se alguém traçasse de seguida uma linha que fosse tanto direita como circular ou de outra qualquer natureza, seria possível encontrar um princípio ou regra ou equação comum a todos os pontos desta linha, em virtude da qual essas mesmas variações deveriam ocorrer. E não há, por exemplo, nenhuma parte do rosto cujo contorno não faça parte de uma linha geométrica e que não possa ser traçado, de uma só vez, por um determinado movimento regulado.

A obra da artista germano-venezuelana Gego (Gertrud Goldschmidt), de quem se apresenta no MAC de Serralves uma selecção de trabalhos – desenhos e objectos tridimensionais – realizados entre 1958 e 1991, propõe-se como um desafio às estruturas: às estruturas construtivas, arquitectónicas, cognitivas, de interferência gestáltica entre bi e tridimensionalidade, de intercorrência abstracto-figurativa, de classificação disciplinar e de categorização estilística. Em todo o caso, o ponto de partida para esta especulação estrutural é invariavelmente a linha (o segmento de recta), elemento de interconexão e sustentação de pontos no espaço (pontos de concorrência): o desenho sobre papel e o desenho no espaço são assim figurações geométricas de sistemas de construção, que explicitam, pelo rigor conceptual, a formação académica da artista – em arquitectura e engenharia – ao mesmo tempo que contrariam e desmistificam, pela recusa da objectualidade, mas também pela flexibilidade, fragilidade e precariedade tecnológica, os cânones apolíneos (de inspiração platónica) adoptados pelo construtivismo, pela arte concreta e por outras tendência da abstracção geométrica popularizadas na América do Sul após a segunda Guerra Mundial.

Os “Bichos” – termo usado por Gego para designar toda a sua obra tridimensional, numa tentativa de evitar a terminologia convencional associada à escultura –, que compreendem, nomeadamente, os “Chorros” (Jorros) – série de peças iniciada em 1970 e baseada na turbulência dos fluidos, em que a direccionalidade fracturada pela força de gravidade priva o conjunto de qualquer posição estrutural – e os “Troncos” – trabalhos principiados em 1974, que se desenvolvem a partir do chão, de modo firme e sistemático, no sentido ascendente –, alusões directas à natureza, são claros exemplos da metáfora orgânica que genericamente enforma esta investigação estética. No entanto, as estruturas modulares de Gego, cuja intrincada conectividade recusa identidade e hierarquia – exceptuando a série “Esferas”, iniciada em 1976, que consistindo em traduções literais de modelos regulares, denota um uso mais sistemático da geometria –, não se submetem a qualquer preformismo “biológico”, desenvolvendo-se, pelo contrário, de modo epigenético e heterotípico pelo espaço. Não será pois despropositado assinalar o carácter decorativo das malhas ramificadas de Gego, não para as desvirtuar, de acordo com a inferiorização contemporânea das artes decorativas, mas para assinalar as afinidades, já observadas, com o arabesco islâmico (abstractização de formas naturais) ou com o vegetalismo da talha dourada, ambos os casos metáforas de infinidade: recusando um centro, o continuum polinucleado de “Reticulárea ambiental” (1969) e dos seu derivados abre-se a um dinamismo barroco.

Contra a cristalização morfológica no sólido – ou, dito de outro modo, no objecto finalizado (acabamento é estabilização) – a pesquisa estética de Gego explora a fluidez, a reconfiguração. As suas estruturas constelacionais são flexíveis, não apenas no aspecto construtivo, mas também do ponto de vista percepcional. A transparência estrutural que define muitas das experiências da artista – e que mostra algumas afinidades com o projecto setecentista da Aufklärung – acentua as interferências espaciais que se estabelecem entre as peças, bem como as relações destas com o espaço expositivo. O que o entremetimento entre espaço real e espaço de representação veicula afinal é que ver é sinónimo de deformar: a redução bidimensional do real ao plano da imagem, particularmente evidente nos efeitos produzidos pela sobreposição paraláctica das malhas (por mais discretas ou invisíveis), põe a nu o esqueleto formalista do estruturalismo.

Mas a formosura, essa qualidade da forma bem proporcionada, bem estruturada, e que é outra maneira de dizer belo, é talvez o horizonte programático dos versos de todos os tempos, mas também o último pudor da arte contemporânea. As formas são belas quando se apresentam em conformidade com o sentido, isto é, quando se mostram inteligíveis, subordináveis a instâncias geométricas e conceptuais: quando podem desafiar os monstros.



por António

Gego, “Esfera Nº2”, 1976. Arame e aço inixidável, 103 (diâmetro). Colecção Mercantil, Caracas